27/02/2025

Matriz perdida, memórias gravadas


No final de semana dos dias 21 e 22 de fevereiro, recebi meus amigos de Limeira e Campinas no ateliê do Xilomóvel. O Xilomóvel é uma iniciativa de produção artística itinerante cujo foco é a gravura, fundado e dirigido pelos profissionais - e queridos colegas - Simone, Luciana e Márcio. Desde agosto de 2024 me matriculei na modalidade de ateliê aberto do projeto, onde os alunos comparecem no espaço e usufruem dos materiais e ferramentas para desenvolver suas ideias acerca deste processo que inclui goivas, prensa, tinta gráfica e matrizes de diferentes elementos (madeira, borracha, metal, etc.).


Desde então venho aprendendo mais sobre a técnica e também promovendo e instigando o conhecimento alheio para com a proposta. Um grupo que muito se interessou pela prática foi o estúdio Ilustrata, composto por meus amigos Bruno, David e Victor, e também suas companheiras Tati, Marina e Lil. Como os ares sempre espalham as boas notícias, outros ilustradores também se juntaram a nós: Ana, Luqta e Caio Yo. Essa configuração de grupo me colocou na posição de mediador entre eles e o Xilomóvel. Comecei a compor um projeto que propusesse a reunião de nós no espaço, em um formato de oficina intensiva para que meus amigos fossem introduzidos e tivessem uma imersão no que tange a gravura.


O Xilomóvel é sediado em Barão Geraldo - distrito que moro desde 2023. Já na sexta-feira nos encontramos na unidade do projeto e fomos recebidos pela Simone e Luciana. Ambas dedicaram a manhã para apresentar o ambiente, instrumentos, possibilidades técnicas e vários outros aspectos deste segmento da arte. Deu pra ver nos olhos do pessoal o encanto e a febre motivadora para produzir. Os meninos principalmente trabalham majoritariamente com desenho digital, eu falo por conta própria que, mesmo dividindo meus esforços entre os softwares e os materiais analógicos, todo encontro com a gravura é mágico e tem ar de novidade - logo imagino o quanto essa experiência deve ser encantadora e significante para quem tem uma constância com o que é digital.


Tenho para mim que a gravura é o extremo do tradicional, ela é cheia de riscos, demanda pensamentos e uma observação completamente específicos e, mesmo que você muito se planeje, ela apresentará resultados diferentes e únicos. Eu digo que na gravura temos quatro desenhos: o que se cria na cabeça; aquele que você faz no papel como esboço; a arte transferida e talhada na matriz; e a última impressão. É um desafio garantir que eles conversem entre si - digo que uma das qualidades da técnica é a imprevisibilidade, a falta de controle, fico genuinamente feliz por praticar um ofício que me dispõe de tantos caminhos criados pelos próprios materiais (o quanto o digital nos possibilita isso? Ele soa completamente mastigado e digerido perto da gravura). Os “erros” e “deslizes” da gravura são completamente passíveis de incorporação e atribuição de significados. É um terreno para descobrir novos meios através de um desaguar de nossas inseguranças gestuais que, por fim, fazem despontar surpresas.


Nessa oportunidade, o pessoal - David, Victor, Bruno, Lil, Tati, Maris, Caio, Luqta e Ana - deslanchou em ideias e foi engraçado testemunhar o retorno para a infância que aconteceu na mesa. Enquanto arte-educador de crianças é de praxe que eu me depare com situações onde os alunos ficam constrangidos com a própria incompatibilidade e estranhamento perante os materiais, isso porque tudo é novidade e eles estão em fase de adaptação. Assistir adultos atravessando esse mesmo fenômeno é, no mínimo, encantador. Passamos anos nos profissionalizando e perseguindo uma sensação de domínio - mesmo que não admitamos isso, é o que subconscientemente fazemos.


Existe para mim uma beleza muito refinada e peculiar neste lugar do desconcerto que busca aprimoramento, contenção. Perdoem-me pela imagem criada para ilustrar o processo (em especial aos meus amigos que participaram da oficina, pois são todos veganos), mas é como um boiadeiro tentando domesticar aquela fera incontrolável e selvagem, de uma natureza muito própria e brutal. Você balança, cai, sobe, maneja o tronco corporal, transpira, se divide entre esforços mentais e físicos, busca um alinhamento entre os dois. A cena foi quase essa: adultos se desapontando, se encantando, compreendendo, perceberam que não entenderam tanto assim, “ah sim, agora acho que sei”, “fiz errado, fiz cagada”, “que gostoso esse material”, “já estou com dores” - mas nunca caindo em desistência (e é aí que a criança curiosa se hospeda, na teimosia de atingir um novo ponto de aprendizado).


Adultos tendem a se atrofiar no que já sabem (ou acham que sabem). Não sei o quanto visualizar cenas como essa se tornaram um vício em minha cabeça por conta do meu trabalho, mas eles mesmos admitiram qualidades que tangenciam a infância. Rememoram em frases como aquilo os lembraram da época da faculdade, ou até antes, de quando tomavam instrução aprimorada de algo até então desconhecido.


Encaro essa técnica de um modo também ritualístico. Gravar superfícies, abrir as cores, entintar sua matriz, optar pelo modo de impressão (prensa ou colher), imputar força e manualidade, com cuidado destacar a pele da carne (papel e matriz) para, enfim, passar um tempo visualizando o mapa gráfico criado - e esse é só o começo de uma possível tiragem que pode ou não receber ainda mais ajustes e cavidades. Depois é deixar secar e perceber os sentidos se aguçando e o espírito da gravura tomando conta. Eu mesmo admito: minhas gravuras começam a fazer sentido e parecer em sintonia com minhas expectativas depois de ao menos duas matrizes produzidas. O tempo segue sendo rei.


Paralela a essa riquíssima experiência imersiva, nos divertimos sem estar buscando imagens específicas. Comemos coisas gostosas: fomos em meus restaurantes prediletos de barão, tomamos sorvete e drinks na rua. Fizemos grande parte dos trajetos andando, voltamos para casa à pé tarde da noite, o que nos fez lembrar dos tempos de adolescência no interior, sem uber, ônibus ou carona (existe algo de muito antigo nisso de andar junto dos seus, desbravando paisagens escuras e inóspitas). Pela manhã fizemos cardio em torno do lago da Unicamp. Dormimos amontoados na sala de casa e tagarelaramos sobre múltiplos assuntos bobos.





Ainda não conversamos sobre o que faremos com as impressões: uma exposição, feira ou venda? As tiragens estão secando e em breve colocaremos para o mundo de fora ver o que este final de semana especial rendeu.

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