28/12/2024

Tempo e trabalho


"OJT, Mitologias caipiras: em busca do corcel perfeito" por Vienno.

Eu passo grande parte do meu tempo pensando em… tempo. Diria que é o tema mais recorrente dentro da minha cabeça. Já trouxe esse hábito na terapia e foi, de longe, a confissão que mais deixou a terapeuta surpresa: a forma com a qual armazeno, organizo e revisito memórias. Acho que tempo é o fenômeno mais emblemático e poderoso que nos cerca enquanto humanidade - e é também o nosso bem imaterial mais precioso. A ideia de “gastar tempo à toa” (por mais que esse conceito seja abstrato e muitas vezes uma desculpa capitalista) preocupa qualquer um e, pensando nisso, me debruço sobre outro conceito: o de desenhar bem e desenhar mal - talvez o grande clichê das pautas criativas.

Sempre que alguém se propõe a praticar algo novo, o primeiro instinto é o de colocar em prática! Realizar! Ver resultados! Mas se tratando de um iniciante das artes, é comum que os saldos não atendam de cara às expectativas (a não ser que você conte com sorte ou outros privilégios que não cabe aqui listar.) A diferença entre um criativo que, grosseiramente falando, “desenha bem” de um que “desenha mal” é literalmente o tempo. E sei que é arriscado trazer essas duas polaridades tão definidas, pois preferimos ignorá-las porém, ao fazê-lo, evitamos confrontar as razões que geram o tal descontentamento que muitos artistas sentem.

Não acredito que desenhar bem ou desenhar mal se alinhe a uma ideia meramente estética de “bonito” ou “feio”. Minha crença é de que os resultados que nos agradam se apoiam no tempo: tempo de prática, de pesquisa, de tomar referências, mas, principalmente, no tempo investido na amizade para com uma obra. Em meu período de graduação em artes visuais - mais especificamente no fim, quando escrevi minha monografia e produzi as peças ilustradas para concluir o curso - passei um semestre inteiro imbuído no mesmo tema, metodologia, acervo de imagens. Essa experiência refinou meu olhar para identificar o tempo das coisas e, mais tarde, reconheci que é quando a passagem temporal se imprime sobre um projeto que o mesmo se atesta como um bom trabalho.

Minha autoridade para avaliar, curar e criticar obras é de nível primário - na realidade nem o faço com frequência ou publicamente, no máximo em uma rodinha de amigos de forma descomprometida. Me interessa muito mais os outros recursos que obtive na academia. Mas divido essas impressões pois gostaria de incentivar outros criadores a passarem tempo com suas criações. Me emociona e rouba toda minha atenção estar frente a frente com uma ilustração, pintura, gravura ou seja qual for o projeto que traz consigo a marcação temporal e, consequentemente, a presença, cuidado e intimidade de seu autor. Para mim, isso é o que define algo “bom”.

Quanto ao ruim, não vamos nos alarmar, suspeitar de nós mesmos e vasculhar nossas cabeças para encontrar quando soltamos ao mundo algo ruim. Essas passagens são também importantes. Me debruço nessa discussão para tornar palatável receios e inseguranças que são tão comuns e muitas vezes não têm forma. O tempo é algo precioso e, por intervenções sistemáticas e sociais, tem se tornado escasso - ou melhor, tem sido roubado de nós. Quanto tempo resta de tudo o que lhe é convencido ser uma obrigação? Quanto tempo sobra das urgências do trabalho? Pior: resta algo depois do sequestro temporal causado pelas telas e aplicativos? Os pixels sugam os segundos e o movimento que faz com que eles sumam sem percebermos é o rolar infinito de dedos - existe um grande interesse do mercado digital pelo nosso tempo.


As mãos são importantes para preservá-lo. Os olhos, as listas, os pincéis, os pés, o papel, enfim. Há uma infinita combinação de gestos, membros e materiais para encapsular e apresentar ao mundo o nosso tempo. Voltando à emoção: nada me deixa mais tocado e positivamente perturbado do que acompanhar os processos de outros artistas. Talvez por isso o sketchbook seja de longe minha ferramenta favorita. Ele não termina em um dia. O caderno de artista registra a germinação e o crescimento de vontades primais de um criativo. Encaremos nossa arte como uma amizade: a qualidade dessa relação depende de uma cadeia de manutenções e essa manutenção depende de tempo. As melhores e mais estáveis amizades são aquelas de anos. Preservo com carinho amigos de uma década e, por mais que tenhamos mudado drasticamente - assim como os assuntos, linguagens e “estilos” de meus sketchbooks - ter elas por perto me gera um senso de tempo e subjetividade muito importantes.

Meus melhores trabalhos são os que dediquei mais tempo na produção. São aqueles que posso chamar de amigo. Tenho um sentimento específico de afeto por alguns desenhos que é como se tivéssemos nos conhecido em um verão e compartilhado toda a estação lado a lado, intensamente. Os melhores resultados parecem vir de projetos que começo em um dia e voluntariamente interrompo o prazer de dar continuidade e finalizá-lo ali - assim como quem pausa uma partida de videogame ou um filme para se deleitar no próximo dia com mais atenção. Então revisito o trabalho na manhã seguinte e noto detalhes que não havia considerado antes porque, surpreendentemente, de um dia para o outro já sou uma nova pessoa.


Faço também o exercício de observar o papel em branco, o primeiro anúncio das linhas, texturas e cores sem tomar decisões no automático, apenas permito que os aspectos visuais fiquem suspensos e flutuando em torno de mim. Vejo o tempo correr sem me preocupar pois algo está tomando forma e obtendo vida própria. Escolho técnicas sem atalhos e macetes: de modo que tragam erros, manchas, limitações e, consequentemente, exigem novos pensamentos, estratégias e pavimentações.

Tempo gasto? Não, neste processo o tempo é investido. Gasto sugere desperdício. Precisamos acreditar no caráter positivo de colocar o máximo de tempo que considerarmos possível e responsável em um desenvolvimento artístico e pessoal. Trocar pressa por paciência. Ânsia e vontade de resultados finais por afeto e envolvimento no processo. É no meio que a magia se hospeda. Se você não se prolonga, perde presença e não se percebe ali e, nesse fenômeno de se perceber criando algo novo, pode até tropeçar na grande sorte de se perceber mais maduro e capaz de caminhos que antes eram desconhecidos.

Desenhar bem ou desenhar mal é, definitivamente, sobre ponto de vista e gosto. Mas não tem como negar que existe também uma diferença notável e determinante sobre obras cujo autor ao menos dedicou tempo de sua vida para processar e concretizá-las. Acredito também que existe uma questão de respeito sobre isso. Respeitamos o tempo investido; é honesto, sensibilizador e incontestável a qualidade dos desenhos que guardam em si a vontade e o carinho de seu criador. Infelizmente nem todos têm a autonomia e liberdade de escolher como irão investir seus respectivos tempos, portanto é revolucionário, anticapitalista e uma contribuição à própria auto-estima a reivindicação desta força invisível.

Trouxe ao longo do texto exemplos de trabalhos com linguagens distintas mas que, para mim, ilustram a opinião. São obras de amigos pessoais com os quais compartilho essas mesmas ideias ou então que tive a honra de ouvir sobre seus próprios processos e identifiquei uma amizade afetuosa e prolongada no fazer artístico. São autores que buscam sempre a dilatação das horas para garimpar referências e dissecá-las sobre a mesa de trabalho. Que infernizam a si mesmos com perturbações oriundas de embates mentais de “o que quero fazer” e “o que consigo fazer” e, costurando tempo sobre tempo, depois de muitas dores de cabeça e insatisfações, se consagram samurais afiados. Os saldos compartilhados são presentes ao mundo, aos olhos e aos sentidos que penetram a pupila. Quanto mais presença e prolongar investidos, mais fundo chega e sou muitíssimo grato por ser permeado pelo tempo de quem amo.




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