16/05/2025
Pandora
Ontem (15.05) fiz minha primeira palestra na Pandora Escola de Artes. Fui convidado para integrar a série “Pandora Apresenta: Viver de Arte”, que tem o intuito de trazer diferentes artistas que já passaram pelos cursos para compartilhar suas trajetórias de carreira no mundo da ilustração. Sou um aluno egresso da modalidade de “ilustração de mercado”, entrei nas aulas a partir de uma bolsa que consegui batendo na porta da coordenação e que, mais tarde, me rendeu um estágio em estúdio de animação na mesma cidade (Campinas).
Mas minha história com a escola começou antes disso: frustrado com os resultados insuficientes nos vestibulares, acabei desistindo de fazer uma faculdade e considerei cursar a Pandora como método de ensino superior. Mal sabia eu que, uma semana depois, uma chamada do Prouni me contemplaria com isenção integral para o bacharel em Artes Visuais da PUC Campinas - o curso do rio mudou e entrei na graduação.
Participando do ecossistema de ilustradores de Campinas - feiras, eventos, palestras e afins - fui criando uma admiração (e até certa idolatria) pelo corpo docente da Pandora. É engraçado hoje olhar para o Vinícius adolescente e perceber a natureza do carinho e deslumbramento que eu tinha por professores em ascensão nas suas carreiras. Eles estavam em um patamar distante do meu.
Naquela época eu era praticamente uma criança cheia de sonhos feitos à mão, instrumentos improvisados, cadernos em calhamaço preenchidos por repetições, raiva, suor e vontade de ser algo que eu ainda não podia alcançar. E, por outro lado, aquelas figuras eram límpidas e iridescentes, pareciam saber um segredo sobre elas mesmas e ter a tranquilidade de fluir pela linguagem da arte sem o amadorismo febril de quem acabou de chegar. Por mais que isso pareça se referir a uma hierarquia, o caso era o contrário: sempre me senti acolhido e bem treinado pelos mestres. Entendi desde cedo que humildade e um bom trabalho iriam me polir minhas arestas pontiagudas.
E aqui estou agora. Divido mesa de projeto com meus antigos professores, dou conselho a alguns deles, apresento novidades, técnicas, temas, trago peculiaridades e pontos de vista lapidados. Fico sobretudo grato pela abertura e confiança que eles deram à mim. Tenho dificuldade em reconhecer a dimensão do que produzi e do nome que estou criando - e de forma alguma acho que isso seja uma modéstia, penso que essa ética é produto de aceitar minhas raízes e apagar o deslumbramento de forma a dar lugar ao encantamento (e isso me abre os olhos principalmente ao que é simples).
Não olho para meus dias de aluno com a postura de superação. Ele, o Vinícius afobado, que tomava ônibus tarde da noite depois de passar o dia estagiando e tendo aulas, está ao meu lado. Carrego ele pendurado em meu molho de chaves, como um pingente que toda vez que caminho e escalo, samba no peito e gera cócegas de alívio, trazendo a lembrança da mudança e impermanência de identidade, dos sonhos e aspirações. Estou muito feliz por ter sido esse adolescente vulcânico, que jurava que nunca iria chegar em outros lugares. De certo modo isso me instigou forte persistência em buscar o oposto dessa condição - pensava que, vindo de família simples, não podia me dar luxos de intervalos (e a paixão pela arte tornou a jornada divertida).
Que exercício espantoso o de aproximar o passado ao presente. Lá atrás eu almejava tantas coisas e elas se tornaram reais - melhor, a vida remodelou com seu mistério cada pretensão minha e incluiu novas palmeiras, oasis e fauna neste panfleto amarelado e desgastado para o qual eu olhava todas as noites e tinha como destino final. A viagem sempre se torna diferente, mas eu continuo o mesmo. É um grande privilégio guardar todas as memórias daquela época, com tanto frescor e consciência. Não ter me esquecido do sentimento de angústia juvenil e poder acolhê-lo com a certeza de que fizemos o ciclo completo. Assim como eu olho o passado de modo translúcido, eu tenho a impressão de que o olhar do passado também me alcançava onde estou agora - profecia, previsão, otimismo. Que bom que sonhei com tanta verdade.
21/04/2025
05/04/2025
27/03/2025
Reinações de menino
Eu vivia no meu próprio reino das águas claras. As imagens que ocupavam minha cabeça eram de rinocerontes falantes, bruxas que emergiam de grutas profundas, praias caipiras e o reflexo agudo do sol sobre o tecido translúcido e esverdeado do rio Piracicaba. Aventuras vividas de botina em chão de terra, um cachorro vira-lata chamado Leão (e sua enorme tigela de alumínio onde minha mãe despejava restos orgânicos e ele, no seu porte de lobisomem, vinha abocanhar). De alguma forma, a fantasia de Narizinho acompanhada pelo Príncipe Escamado ressoava neste recorte do meu cotidiano. Bastava repousar sobre um tédio infantil e os espíritos sublimes da imaginação vazavam por debaixo dos tanques d’água, se esgueiravam da casinha de ferramentas, desciam por entre os galhos da mangueira e me alcançavam pela corda do balanço de madeira.
Eram dias de lambari. Tenho a memória gravada até hoje em minhas narinas. Paisagens que ascendem ao menor odor da quirera e de escamas úmidas. A podridão verde que acumula sobre a lama das bordas do rio perfuma o ar e este tempo longínquo se recompõe com o mesmo frescor do hoje. A ilha da outra margem nunca foi visitada - e agradeço pela inacessibilidade. Povoei a mata vizinha com mistérios de criança, com meus medos, deixei todos lá. As bruxas, as mulas-sem-cabeça, os bichos que vêm cheios de bocas de arrancar pedaço, os corpos secos e os mortos vivos. Isolei-os no verso negativo do rancho.
A fita cassete da adaptação do Sítio do Pica-Pau Amarelo para a televisão dos anos 2000 rodava no aparelho e alimentava meu repertório. Bastava esse material e, numa transmissão em looping, novos detalhes despontavam. Curioso o que pode acontecer à mente infantil quando não se tem acesso a um número vasto de mídias, mas se compensa na paixão obsessiva por uma em específico. Essa narrativa se tornou uma régua que media meu crescimento ao mesmo tempo que nutria e me acompanhava. Nenhum rio é sempre o mesmo e essa regra se aplica às histórias que consumimos. Todos os dias a turma do sítio amadurecia junto de mim.
Existe esse espaço da minha formação que mantive preservado no meu íntimo. Essa casa do interior de poucos cômodos cujo acesso se dá depois de muita estrada, com porta para a cozinha que é virada para o grande fluxo de água que corre escuro e se aprofunda num leito desconhecido. O terreiro de milho que eu fazia questão de não frequentar como os outros espaços do rancho para que ele se mantivesse estranho a mim. A ocasião em que invadi o vizinho pelas grades arrebentadas e conheci pela primeira vez um pé de amora - e vi brotar um vermelho de sangue frutífero em meus dedos tão pequenos.
Visito pouco esse menino. Me esqueço de que é dessa nascente que brota tanta linguagem e tateamento do mundo. De um continente povoado por um pescador e uma mãe sensível às aptidões do filho, materiais de arte baratos para ocupar o corpo frenético e dar vazão a minha energia criativa, à vontade de mentir, de cavalgar a mula, de capturar as invisibilidades que os adultos não percebiam. Não sei dizer - e prefiro não buscar essa resposta - o quanto era ficcional e qual parcela era só realidade. Não havia fronteiras, somente este rio que se alcançava depois de uma escadaria empapada de musgo, moluscos e suas conchas. O reino das águas claras.
26/03/2025
19/03/2025
27/02/2025
Matriz perdida, memórias gravadas
Desde então venho aprendendo mais sobre a técnica e também promovendo e instigando o conhecimento alheio para com a proposta. Um grupo que muito se interessou pela prática foi o estúdio Ilustrata, composto por meus amigos Bruno, David e Victor, e também suas companheiras Tati, Marina e Lil. Como os ares sempre espalham as boas notícias, outros ilustradores também se juntaram a nós: Ana, Luqta e Caio Yo. Essa configuração de grupo me colocou na posição de mediador entre eles e o Xilomóvel. Comecei a compor um projeto que propusesse a reunião de nós no espaço, em um formato de oficina intensiva para que meus amigos fossem introduzidos e tivessem uma imersão no que tange a gravura.
O Xilomóvel é sediado em Barão Geraldo - distrito que moro desde 2023. Já na sexta-feira nos encontramos na unidade do projeto e fomos recebidos pela Simone e Luciana. Ambas dedicaram a manhã para apresentar o ambiente, instrumentos, possibilidades técnicas e vários outros aspectos deste segmento da arte. Deu pra ver nos olhos do pessoal o encanto e a febre motivadora para produzir. Os meninos principalmente trabalham majoritariamente com desenho digital, eu falo por conta própria que, mesmo dividindo meus esforços entre os softwares e os materiais analógicos, todo encontro com a gravura é mágico e tem ar de novidade - logo imagino o quanto essa experiência deve ser encantadora e significante para quem tem uma constância com o que é digital.
Tenho para mim que a gravura é o extremo do tradicional, ela é cheia de riscos, demanda pensamentos e uma observação completamente específicos e, mesmo que você muito se planeje, ela apresentará resultados diferentes e únicos. Eu digo que na gravura temos quatro desenhos: o que se cria na cabeça; aquele que você faz no papel como esboço; a arte transferida e talhada na matriz; e a última impressão. É um desafio garantir que eles conversem entre si - digo que uma das qualidades da técnica é a imprevisibilidade, a falta de controle, fico genuinamente feliz por praticar um ofício que me dispõe de tantos caminhos criados pelos próprios materiais (o quanto o digital nos possibilita isso? Ele soa completamente mastigado e digerido perto da gravura). Os “erros” e “deslizes” da gravura são completamente passíveis de incorporação e atribuição de significados. É um terreno para descobrir novos meios através de um desaguar de nossas inseguranças gestuais que, por fim, fazem despontar surpresas.
Nessa oportunidade, o pessoal - David, Victor, Bruno, Lil, Tati, Maris, Caio, Luqta e Ana - deslanchou em ideias e foi engraçado testemunhar o retorno para a infância que aconteceu na mesa. Enquanto arte-educador de crianças é de praxe que eu me depare com situações onde os alunos ficam constrangidos com a própria incompatibilidade e estranhamento perante os materiais, isso porque tudo é novidade e eles estão em fase de adaptação. Assistir adultos atravessando esse mesmo fenômeno é, no mínimo, encantador. Passamos anos nos profissionalizando e perseguindo uma sensação de domínio - mesmo que não admitamos isso, é o que subconscientemente fazemos.
Existe para mim uma beleza muito refinada e peculiar neste lugar do desconcerto que busca aprimoramento, contenção. Perdoem-me pela imagem criada para ilustrar o processo (em especial aos meus amigos que participaram da oficina, pois são todos veganos), mas é como um boiadeiro tentando domesticar aquela fera incontrolável e selvagem, de uma natureza muito própria e brutal. Você balança, cai, sobe, maneja o tronco corporal, transpira, se divide entre esforços mentais e físicos, busca um alinhamento entre os dois. A cena foi quase essa: adultos se desapontando, se encantando, compreendendo, perceberam que não entenderam tanto assim, “ah sim, agora acho que sei”, “fiz errado, fiz cagada”, “que gostoso esse material”, “já estou com dores” - mas nunca caindo em desistência (e é aí que a criança curiosa se hospeda, na teimosia de atingir um novo ponto de aprendizado).
Adultos tendem a se atrofiar no que já sabem (ou acham que sabem). Não sei o quanto visualizar cenas como essa se tornaram um vício em minha cabeça por conta do meu trabalho, mas eles mesmos admitiram qualidades que tangenciam a infância. Rememoram em frases como aquilo os lembraram da época da faculdade, ou até antes, de quando tomavam instrução aprimorada de algo até então desconhecido.
Encaro essa técnica de um modo também ritualístico. Gravar superfícies, abrir as cores, entintar sua matriz, optar pelo modo de impressão (prensa ou colher), imputar força e manualidade, com cuidado destacar a pele da carne (papel e matriz) para, enfim, passar um tempo visualizando o mapa gráfico criado - e esse é só o começo de uma possível tiragem que pode ou não receber ainda mais ajustes e cavidades. Depois é deixar secar e perceber os sentidos se aguçando e o espírito da gravura tomando conta. Eu mesmo admito: minhas gravuras começam a fazer sentido e parecer em sintonia com minhas expectativas depois de ao menos duas matrizes produzidas. O tempo segue sendo rei.
Paralela a essa riquíssima experiência imersiva, nos divertimos sem estar buscando imagens específicas. Comemos coisas gostosas: fomos em meus restaurantes prediletos de barão, tomamos sorvete e drinks na rua. Fizemos grande parte dos trajetos andando, voltamos para casa à pé tarde da noite, o que nos fez lembrar dos tempos de adolescência no interior, sem uber, ônibus ou carona (existe algo de muito antigo nisso de andar junto dos seus, desbravando paisagens escuras e inóspitas). Pela manhã fizemos cardio em torno do lago da Unicamp. Dormimos amontoados na sala de casa e tagarelaramos sobre múltiplos assuntos bobos.
Ainda não conversamos sobre o que faremos com as impressões: uma exposição, feira ou venda? As tiragens estão secando e em breve colocaremos para o mundo de fora ver o que este final de semana especial rendeu.
12/02/2025
Suspeito que tudo seja luz
Quando a luz do sol permeia uma vegetação, me concentro no desenho que se cria nas paredes ou no chão. Gosto de como as ondas de vento criam uma certa animação nas folhagens, das silhuetas esmaecidas dançando de um jeito preguiçoso no concreto, acenando e variando de posição como se eu estivesse num lugar muito limiar entre sonho e lucidez.
Um tapete de brilhos esburacados embaixo dos meus pés, abrindo minha pele. O encontro de diferentes elementos naturais - brisa, copa e posição solar - escolhendo quais trechos do mundo revelar. Um recorte luminoso das superfícies - de longe, constelações, ou seriam portais?
Tiro um tempo toda manhã que chego na escola em que dou aula para observar o comportamento dessas centelhas no ambiente. Antes que as crianças cheguem e a beleza sutil seja tomada por animosidades selvagens, antes que os lampejos (ariscos como são) fujam.
Comecei a prestar ainda mais atenção nisso depois que assisti ao filme Perfect Days e fiquei tocado pela relação do Hirayama com esses fantasmas brilhantes. O personagem se envolve com as árvores, com o tempo e o momento que passa. Diante de tantas impermanências que pesam, vale a pena se permitir ser fisgado por essa. Sente-se debaixo de uma árvore pela manhã e seja atravessado pelos raios.
08/01/2025
Itirapina 2025
Mesa de desenho: materiais, frios e espumante
Entre os dias 03 e 07 de janeiro de 2025 eu, Bece e João Botas fizemos uma passagem pelo sítio deste último. Somos um trio de amigos artistas que se conheceram no instituto de artes da Unicamp e desde então combinamos nossos interesses e personalidades em pequenos e grandes encontros (alguns urbanos e, como neste mais recente, rurais). Apanhamos nossos materiais e nos retiramos por quatro dias no interior de Itirapina, entre pastos, matas, vacas, onças, javalis, caiporas e fogo-corredor.
Horta do sítio
Ao longo do recesso aproveitei para ficar longe das redes sociais, o que foi muito bom e me possibilitou ainda mais presença na programação que incluiu visita à Brotas, turismo no antiquário da cidade, trilha em mata fechada, cachoeiras, passeio à cavalo, comidas caseiras deliciosas e, claro, muitíssimas sessões de desenho com a Bece e João.
"Árvore da vida"
Nossa primeira visita juntos ao sítio do Botas ocorreu em janeiro de 2024, exatamente um ano atrás. Foi interessante comparar como naquela fase não éramos tão íntimos quanto somos hoje e também a semelhança entre os roteiros que planejamos. Dessa vez pudemos produzir mais imagens inspiradas no que vimos e partilhamos nos diferentes cenários da viagem. Foi como mapear tanto a memória do ano anterior ao mesmo tempo que criamos uma cartografia mais fresca do campo que nos recebeu com tanta beleza.
Respectivamente: buquê de hortaliças e flores do sítio, espigas de milho secando, galinhas da Dona Giva & retratos de João e Bece feitos por mim (enquanto esperávamos a vitória de Fernanda Torres)
Por sermos um grupo pequeno, composto por três artistas, foi tranquilo de nos organizarmos e combinarmos as vontades. Passamos grande parte do tempo em uma mesa larga, distribuímos nossos papéis, tintas, marcadores e outras ferramentas para narrar o que mais chamava nossa atenção.
Itens da cozinha do sítio
Objetos vistos no antiquário de Itirapina
Pelo o que observei, Bece desenhou principalmente personagens: bonecas, figuras humanas, criaturas curiosas com formas engraçadas - e também preencheu com cenários do sítio parte do sketchbook que compramos juntos um dia antes da viagem (tomamos sorvete e também chuva entre a papelaria e a casa para pegarmos suas malas).
Desenhos de Bece. Personagens que ela criou a partir das maritacas que se apossaram do forro da casa. Ouvíamos as famílias da ave o tempo todo passeando pelo telhado. Veja mais de seu trabalho aqui
João também tem sua assinatura própria em temas e formas de compor imagens. Suas peças maiores produzidas nas sessões de desenho incluem pinturas mitológicas de uma manga formando um altar e um peixe flechado por ele mesmo, tempo atrás, com direito a escrituras vernaculares. Bece fez uso principalmente de marcadores e lápis, enquanto João criou a partir de aquarela e tinta acrílica.
João e seu peixe flecha. Em uma tentativa de caça, o João acabou flechando um pacu e tanto o peixe quanto a arma afundaram no rio. Veja mais de seu trabalho aqui
Minhas produções incluem natureza morta, animais e um pouco de cenário. Ilustrei também objetos que vi pelo antiquário e, provavelmente, meu saldo predileto: uma cena onde eu, Bece e João carregamos itens oriundos do sítio em uma espécie de fanfarra rural. Eu seguro uma sacola com alimentos da horta, Bece cavalga em uma galinha abraçando um ovo caipira e João coleta grãos e sementes pelo caminho.
Respectivamente: eu (carregando verduras da horta), Bece (cavalgando uma galinha e abraçando um ovo caipira) e João (com um punhado de grãos e sementes
O fim do dia no campo é o momento mais bonito. Criei duas aquarelas pequenas para ilustrar a “hora dourada”: uma releitura da minha reação perplexa diante de um pôr-do-sol deslumbrante e a reprodução de um descanso que nos demos no deck do açude, onde observamos e alimentamos os peixes (e até pegamos alguns nas mãos). Foi curioso ver como os menores se aventuravam sem medo na superfície ao passo em que os maiores eram somente sombras mais ao fundo do lago.
Vista para o pôr do sol
Alimentando peixes no açude
Foi divertido e afetivo dividir esse momento com outros dois amigos. Observar como produzir junto de outras pessoas faz o tempo fluir e me leva ao mesmo estado de espírito de quando eu era criança e me sentava para praticar o desenho em turma, sem sentir pressão ou cair em labirintos de expectativas. É algo muito próximo da brincadeira, onde cada um habita seu silêncio - vezes interrompido por um comentário bobo, pedido de material ou intervalo dedicado a contemplar o que o colega está fazendo (e sair inspirado a retornar para sua própria folha de papel).
Amoras
Sapo comendo besouro
Sou filho único. Disse à Bece que sinto que essa experiência (de passar vários dias e noites com amigos) é o mais próximo que vou chegar de ter irmãos. Dividimos momentos mundanos como escovar os dentes na frente do espelho, sentar na cadeira depois do almoço e colocar os pés para o alto, não se importar com a própria aparência, jeito ou humor e também situações únicas como uma longa trilha em mata fechada que nos leva a uma cachoeira misteriosa e curativa.
Carriola com maxixes
Arizona, égua da irmã do João. Foi a primeira vez que cavalguei, ela era muito alta
Foi uma viagem pouco planejada, porém muito marcante. E talvez exatamente o fato de termos ido sem muitos planos que tornou a passagem pelo sítio tão espontânea e especial - só sabíamos que queríamos estar um com o outro naquele tempo e espaço. Foi um jeito mágico de começar bem 2025.
28/12/2024
Tempo e trabalho
"OJT, Mitologias caipiras: em busca do corcel perfeito" por Vienno.
Eu passo grande parte do meu tempo pensando em… tempo. Diria que é o tema mais recorrente dentro da minha cabeça. Já trouxe esse hábito na terapia e foi, de longe, a confissão que mais deixou a terapeuta surpresa: a forma com a qual armazeno, organizo e revisito memórias. Acho que tempo é o fenômeno mais emblemático e poderoso que nos cerca enquanto humanidade - e é também o nosso bem imaterial mais precioso. A ideia de “gastar tempo à toa” (por mais que esse conceito seja abstrato e muitas vezes uma desculpa capitalista) preocupa qualquer um e, pensando nisso, me debruço sobre outro conceito: o de desenhar bem e desenhar mal - talvez o grande clichê das pautas criativas.
Sempre que alguém se propõe a praticar algo novo, o primeiro instinto é o de colocar em prática! Realizar! Ver resultados! Mas se tratando de um iniciante das artes, é comum que os saldos não atendam de cara às expectativas (a não ser que você conte com sorte ou outros privilégios que não cabe aqui listar.) A diferença entre um criativo que, grosseiramente falando, “desenha bem” de um que “desenha mal” é literalmente o tempo. E sei que é arriscado trazer essas duas polaridades tão definidas, pois preferimos ignorá-las porém, ao fazê-lo, evitamos confrontar as razões que geram o tal descontentamento que muitos artistas sentem.
Não acredito que desenhar bem ou desenhar mal se alinhe a uma ideia meramente estética de “bonito” ou “feio”. Minha crença é de que os resultados que nos agradam se apoiam no tempo: tempo de prática, de pesquisa, de tomar referências, mas, principalmente, no tempo investido na amizade para com uma obra. Em meu período de graduação em artes visuais - mais especificamente no fim, quando escrevi minha monografia e produzi as peças ilustradas para concluir o curso - passei um semestre inteiro imbuído no mesmo tema, metodologia, acervo de imagens. Essa experiência refinou meu olhar para identificar o tempo das coisas e, mais tarde, reconheci que é quando a passagem temporal se imprime sobre um projeto que o mesmo se atesta como um bom trabalho.
Minha autoridade para avaliar, curar e criticar obras é de nível primário - na realidade nem o faço com frequência ou publicamente, no máximo em uma rodinha de amigos de forma descomprometida. Me interessa muito mais os outros recursos que obtive na academia. Mas divido essas impressões pois gostaria de incentivar outros criadores a passarem tempo com suas criações. Me emociona e rouba toda minha atenção estar frente a frente com uma ilustração, pintura, gravura ou seja qual for o projeto que traz consigo a marcação temporal e, consequentemente, a presença, cuidado e intimidade de seu autor. Para mim, isso é o que define algo “bom”.
Quanto ao ruim, não vamos nos alarmar, suspeitar de nós mesmos e vasculhar nossas cabeças para encontrar quando soltamos ao mundo algo ruim. Essas passagens são também importantes. Me debruço nessa discussão para tornar palatável receios e inseguranças que são tão comuns e muitas vezes não têm forma. O tempo é algo precioso e, por intervenções sistemáticas e sociais, tem se tornado escasso - ou melhor, tem sido roubado de nós. Quanto tempo resta de tudo o que lhe é convencido ser uma obrigação? Quanto tempo sobra das urgências do trabalho? Pior: resta algo depois do sequestro temporal causado pelas telas e aplicativos? Os pixels sugam os segundos e o movimento que faz com que eles sumam sem percebermos é o rolar infinito de dedos - existe um grande interesse do mercado digital pelo nosso tempo.
As mãos são importantes para preservá-lo. Os olhos, as listas, os pincéis, os pés, o papel, enfim. Há uma infinita combinação de gestos, membros e materiais para encapsular e apresentar ao mundo o nosso tempo. Voltando à emoção: nada me deixa mais tocado e positivamente perturbado do que acompanhar os processos de outros artistas. Talvez por isso o sketchbook seja de longe minha ferramenta favorita. Ele não termina em um dia. O caderno de artista registra a germinação e o crescimento de vontades primais de um criativo. Encaremos nossa arte como uma amizade: a qualidade dessa relação depende de uma cadeia de manutenções e essa manutenção depende de tempo. As melhores e mais estáveis amizades são aquelas de anos. Preservo com carinho amigos de uma década e, por mais que tenhamos mudado drasticamente - assim como os assuntos, linguagens e “estilos” de meus sketchbooks - ter elas por perto me gera um senso de tempo e subjetividade muito importantes.
Meus melhores trabalhos são os que dediquei mais tempo na produção. São aqueles que posso chamar de amigo. Tenho um sentimento específico de afeto por alguns desenhos que é como se tivéssemos nos conhecido em um verão e compartilhado toda a estação lado a lado, intensamente. Os melhores resultados parecem vir de projetos que começo em um dia e voluntariamente interrompo o prazer de dar continuidade e finalizá-lo ali - assim como quem pausa uma partida de videogame ou um filme para se deleitar no próximo dia com mais atenção. Então revisito o trabalho na manhã seguinte e noto detalhes que não havia considerado antes porque, surpreendentemente, de um dia para o outro já sou uma nova pessoa.
Faço também o exercício de observar o papel em branco, o primeiro anúncio das linhas, texturas e cores sem tomar decisões no automático, apenas permito que os aspectos visuais fiquem suspensos e flutuando em torno de mim. Vejo o tempo correr sem me preocupar pois algo está tomando forma e obtendo vida própria. Escolho técnicas sem atalhos e macetes: de modo que tragam erros, manchas, limitações e, consequentemente, exigem novos pensamentos, estratégias e pavimentações.
Tempo gasto? Não, neste processo o tempo é investido. Gasto sugere desperdício. Precisamos acreditar no caráter positivo de colocar o máximo de tempo que considerarmos possível e responsável em um desenvolvimento artístico e pessoal. Trocar pressa por paciência. Ânsia e vontade de resultados finais por afeto e envolvimento no processo. É no meio que a magia se hospeda. Se você não se prolonga, perde presença e não se percebe ali e, nesse fenômeno de se perceber criando algo novo, pode até tropeçar na grande sorte de se perceber mais maduro e capaz de caminhos que antes eram desconhecidos.
Desenhar bem ou desenhar mal é, definitivamente, sobre ponto de vista e gosto. Mas não tem como negar que existe também uma diferença notável e determinante sobre obras cujo autor ao menos dedicou tempo de sua vida para processar e concretizá-las. Acredito também que existe uma questão de respeito sobre isso. Respeitamos o tempo investido; é honesto, sensibilizador e incontestável a qualidade dos desenhos que guardam em si a vontade e o carinho de seu criador. Infelizmente nem todos têm a autonomia e liberdade de escolher como irão investir seus respectivos tempos, portanto é revolucionário, anticapitalista e uma contribuição à própria auto-estima a reivindicação desta força invisível.
Trouxe ao longo do texto exemplos de trabalhos com linguagens distintas mas que, para mim, ilustram a opinião. São obras de amigos pessoais com os quais compartilho essas mesmas ideias ou então que tive a honra de ouvir sobre seus próprios processos e identifiquei uma amizade afetuosa e prolongada no fazer artístico. São autores que buscam sempre a dilatação das horas para garimpar referências e dissecá-las sobre a mesa de trabalho. Que infernizam a si mesmos com perturbações oriundas de embates mentais de “o que quero fazer” e “o que consigo fazer” e, costurando tempo sobre tempo, depois de muitas dores de cabeça e insatisfações, se consagram samurais afiados. Os saldos compartilhados são presentes ao mundo, aos olhos e aos sentidos que penetram a pupila. Quanto mais presença e prolongar investidos, mais fundo chega e sou muitíssimo grato por ser permeado pelo tempo de quem amo.
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